PL da Devastação coloca em risco mais de 80% dos quilombos e 32% das Terras Indígenas do país

Quando uma estrada atravessa terras habitadas por povos indígenas, isso impacta diretamente a vida dessas comunidades. Kleber Karipuna, morador da Terra Indígena (TI) Uaçá, no Amapá, e coordenador da Articulação Brasileira dos Povos Indígenas (Apib), explica que a primeira consequência da construção de rodovias é a perda de vegetação. Ele menciona que a BR-156, que passou pela sua terra na década de 1970, resultou na destruição de 69 quilômetros de área verde, afetando o uso que os indígenas faziam dessa terra para suas atividades culturais e tradicionais.
Recentemente, o Senado aprovou o Projeto de Lei 2.159, conhecido como PL da Devastação. Essa proposta pode agravar os problemas enfrentados por 32,6% das Terras Indígenas e 80,1% dos Territórios Quilombolas no país, de acordo com informações do Instituto Socioambiental (ISA). Esse projeto reduz a necessidade de licenciamento ambiental para áreas cujo processo de titulação, no caso das comunidades quilombolas, ou homologação, no caso das terras indígenas, ainda não foi finalizado. Isso significa que as populações afetadas podem não ser consultadas em projetos que impactem suas terras.
Atualmente, há 259 Terras Indígenas com o processo de demarcação pendente e, segundo dados do Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária (Incra), apenas 384 títulos de Territórios Quilombolas foram emitidos, com 1.937 áreas ainda em processo de titulação. Em consequência, 1.553 Territórios Quilombolas estão atualmente excluídos dos procedimentos de licenciamento ambiental, o que pode levar à exploração de suas terras sem a devida proteção.
A aprovação desse projeto no Senado permitirá que a proposta siga para a Câmara dos Deputados. O PL é apoiado por parlamentares ligados ao agronegócio e altera as regras de licenciamento ambiental, um importante mecanismo de proteção ao meio ambiente. Hoje, toda atividade que possa causar poluição deve passar por estudos que envolvem a participação das comunidades afetadas. Se a proposta for aprovada em todas as instâncias, essa exigência será suavizada, especialmente para atividades de pequeno porte e para obras de infraestrutura, como pontes e hidrelétricas.
Mesmo enfrentando os impactos da BR-156 na década de 1970, Kleber Karipuna continua a observar outros desafios que ameaçam terras indígenas, como contaminação de água por agrotóxicos de plantações vizinhas e a destruição de locais sagrados. O novo projeto de lei, segundo especialistas, aumenta essas ameaças, atingindo até mesmo áreas que já são consideradas devidamente demarcadas.
A proposta permite que órgãos licenciadores que não têm competência legal para tratar de questões relacionadas a terras indígenas desconsiderem as decisões de órgãos competentes, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Isso pode resultar em decisões que ignoram os direitos e interesses dos povos originários.
As terras indígenas representam mais de 115 milhões de hectares de vegetação nativa, correspondendo a mais de 20% da floresta preservada no país. Um estudo recente mostra que essas áreas têm sido eficazes na proteção contra o desmatamento, tendo perdido apenas 1,2% da vegetação nos últimos 30 anos, enquanto as propriedades privadas tiveram uma perda significativa de 19,9%.
Os Territórios Quilombolas também estão entre os locais que mais preservam a vegetação nativa, com uma perda de apenas 4,7% entre 1985 e 2022. No quilombo Ribeirão Grande/Terra Seca, em Barra do Turvo (SP), as famílias locais enfrentam a contaminação da água por dejetos de búfalos e o uso de agrotóxicos nas plantações próximas.
Nilce Pontes, coordenadora da Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras, destaca que a falta de titulação dos quilombos atrai invasores que exploram as comunidades. Ela ressalta que, embora os territorios estejam reconhecidos, a ausência de seu devido reconhecimento legal permite a exploração.
Kleber alerta que o PL da Devastação pode comprometer os avanços que foram conquistados nas últimas décadas em termos de direitos dos povos tradicionais e destaca que o projeto ignora a dívida histórica do Estado com os povos indígenas, que não conseguiram ver suas terras demarcadas conforme a Constituição de 1988.